quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O Supremo não pode intervir, a Câmara não pode se dobrar

Não se sabe até onde nos levará o julgamento do chamado “mensalão” pelo Supremo Tribunal Federal. Contando com estridente respaldo da mídia, dito julgamento granjeou simpatia da população, da sua camada média, de setores de elite. Mas o Supremo tem pela frente interrogações constrangedoras: o mensalão do PSDB foi anterior ao do PT, por que o do PT foi julgado antes? O julgamento foi marcado para as vésperas de eleições municipais, influenciando-as. Houve condenações sem provas, a partir da introdução, no curso do julgamento, do polêmico critério do “domínio do fato”.

Na verdade, o Supremo dobrou-se a vulgarizações que o diminuíram: o Relator do Processo, ministro Joaquim Barbosa, foi vaidoso, irritadiço, descortês para com seus pares e portou-se como um promotor, não como um Juiz; o revisor do processo, ministro Ricardo Lewandowski, apesar da coragem de levantar o contraditório em ambiente avesso a esse método, também passou, por vezes, a ideia de um advogado de defesa, não de um Juiz. São problemas que podem se reverter contra a imagem do Supremo, a longo prazo. Mas existem riscos de curto prazo.

O arrebatamento punitivo do STF está levando os senhores ministros a urdirem uma temerária interferência no Poder Legislativo, para cassar alguns de seus membros. Optam, assim, por corrigir o texto constitucional, supostamente flexível demais, e que poderia ensejar que mandatos não fossem cassados.

A Constituição prevê seis hipóteses para a perda de mandato de parlamentar (Art. 55). Especifica que “a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado”. Em nenhum momento admite a eventualidade do Supremo decidir sobre cassação de parlamentar. O ministro Marco Aurélio, que já sustentou lúcidas posições em sua passagem pelo Supremo, permitiu-se fazer leitura irônica do texto constitucional, procurando mostrá-lo como pouco adequado para cassar mandatos.

Fui constituinte, da Comissão de Sistematização e da Comissão de Redação do texto final. Havia sim, na Constituinte, a ideia de se fechar os caminhos para procedimentos que a ditadura tinha usado à saciedade, como a cassação de mandatos. Na ditadura quem cassava era o Executivo. Em tempos mais antigos, em maio de 1947, foi o Tribunal Superior Eleitoral que cassou a legenda do Partido Comunista do Brasil, PCB. Mas, mesmo aí, os mandatos dos parlamentares comunistas só foram extintos a partir da votação de um projeto na Câmara, em 10 de janeiro de 1948.

O constituinte de 1988 realmente esmerou-se para que o caminho de cassação de mandatos fosse tolhido, pois que, na história do Brasil, esse sempre foi o caminho do arbítrio. Nem o Executivo nem o Judiciário poderiam cassar mandatos. Parlamentares poderiam ser condenados e, nesse caso, a Constituição diz que “perderá o mandato... quem sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”. Mas, pela Constituição, “a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados”. (Art. 55, §2º).

A Constituição não pode ser desrespeitada. O Supremo pode condenar criminalmente parlamentares e enviar o ato à consideração do Legislativo. Este deve deliberar sobre o assunto, e assumir suas responsabilidades. Mas se o Supremo resolver cassar, a Câmara não pode resolver atendê-lo. Seria uma desmoralização da Câmara, seria acatar que o Supremo pode corrigir a Constituição.

Há 24 anos essa Constituição foi promulgada. Ainda que tenha defeitos e insuficiências, é uma constituição avançada. Com ela a democracia tem se desenvolvido entre nós. Corre o risco de estarmos agora à beira da primeira crise institucional séria, envolvendo poderes. É preciso sensatez e prudência, que às vezes exige coragem, para recuar, para não admitir. O desejo maior é de que o Supremo não nos conduza a essa dramática situação.

Jornal A Tarde, 18 de Dezembro de 2012 - página A3 - Opinião.
Haroldo Lima - Ex-Deputado Federal pela Bahia,

foi deputado constituinte em 1987/8, e diretor geral da Agência Nacional do Petróleo.