Os grandes avanços científicos e tecnológicos são devidos, em grande parte à civilização ocidental. Suas inúmeras conquistas foram colocadas a serviço do bem-estar, através de instituições reguladoras da convivência social e possibilitaram enriquecer e ampliar o próprio conceito de cidadania. Foi na civilização ocidental que também se idealizou e instalaram-se importantes organizações internacionais, como a ONU, Unesco, OIT, OMS, dentre outras.
No entanto, não obstante a todo avanço científico e tecnológico, alcançados por realizações da inteligência racional, não se verifica o mesmo desenvolvimento moral, pois foi exatamente por aqui, entre a civilização ocidental, que iniciaram-se as guerras mais sangrentas e letais. Igualmente impôs-se a escravidão às comunidades materialmente mais atrasadas, com alto grau de desumanização e desculturação e, com muitos povos, foi adotada a prática do genocídio das minorias étnicas e religiosas. Essas práticas levaram ao enfraquecimento das consciências e dos valores comunitários de convivência social, dando lugar a um acentuado e perigoso individualismo. Prática esta que ainda hoje se manifesta de forma coletiva para excluir grupos minoritários. Por isso, ao longo da história estes grupos fragilizados têm-se organizado para reivindicar direitos e espaço social.
As pessoas com transtornos do espectro autista, por exemplo, têm sido deixadas à margem do acesso às políticas públicas, inclusive na área da Educação, isto por que, para este segmento social, falta uma definição que proponha a distinção entre “neurodiversidade ” e “deficiências neurológicas”, bem como o reconhecimento de que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD, ao adotar em seu artigo primeiro a expressão “impedimentos de natureza mental e intelectual”, quis determinar que o primeiro impedimento faz parte do quadro da saúde mental, ou seja, pessoas com deficiência psicossocial (transtornos mentais), como vem sendo usado por estudiosos destas áreas; enquanto o segundo se refere tão somente ao déficit cognitivo, principal gerador da deficiência intelectual, querendo a norma internacional estender sua proteção a ambos segmentos.
Entendemos que o termo autista esteja subjacente à expressão “impedimentos de natureza mental”, grafada na CDPD. O reconhecimento da abrangência da norma e da discriminação entre “neurodiversidade” e “deficiências neurológicas”, permitiria desenhar políticas públicas para possibilitar acesso a tratamento àqueles que desejassem e garantiria aos que dispensam o tratamento o direito de fazê-lo, pois para alguns o autismo é um elemento fundamental da identidade, no qual não se quer que o Estado interfira sem necessidade. O desafio seria distinguir entre os dois elementos, apoiando simultaneamente a ambos, ou seja, estabelecer uma fronteira definida entre um e outro que fosse aceita por ambos os movimentos, visto que o autismo é deficiência para uns e exemplo da diversidade do cérebro humano, para outros. Acreditamos que o tema deva ser incorporado pelos movimentos das pessoas com deficiência, pois as definições de “deficiências neurológicas” e de “neurodiversidade” estão no âmbito das discussões sobre os direitos sociais deste segmento.
Incluir um autista na rede regular de ensino, por exemplo, é um desafio que ameaça pelo desconhecimento do problema, em virtude da falta de definições para esse segmento. Mas as soluções simplificam-se quando os mitos, estigmas e rótulos são derrubados. No caso da Educação, a partir da observação das habilidades do aluno, o professor poderá elaborar um programa de ação efetivamente inclusivo. Este processo inicia-se quando o professor procura conhecer o aluno através de suas necessidades e habilidades, avaliando como ele se comporta diante dos meios de ensino e aprendizagem. O material pedagógico nasce a partir dessa observação sobre o comportamento do aluno, ou seja, o professor utilizará os recursos pedagógicos da escola como mediadores.
Assim, ainda que o aluno não saiba ler, as imagens podem servir para estimular a imaginação, levando-o ao contato com uma forma de linguagem, pois quando o aluno manipula materiais pedagógicos ele se sente incluído. Enquanto quem pode ler explora o mundo da linguagem pela descoberta das palavras, quem não lê explora pela descoberta das imagens. E dessa forma o material pedagógico será utilizado por alunos com e sem necessidades educativas especiais, pois que a educação inclusiva parte do princípio de que para todo aluno existe uma forma de ensinar e de que todos têm condição de aprender.
Outro aspecto para lidar é com a discriminação ou bullying. Precisamos entender que as barreiras são muito mais atitudinais do que físicas, estão primeiramente no campo da subjetividade. Essas dificuldades podem ser vencidas com ações pró-educativas dos gestores e professores da escola, para o que é indispensável a participação da família. A partir desse ponto o professor poderá elaborar atividades para toda turma, incluindo os alunos com necessidades educativas especiais. Os casos severos, nos quais as pessoas têm dificultada a inclusão física no espaço escolar, estas poderão ser incluídas no espaço pedagógico e afetivo, por meio de políticas educacionais inclusivas, podendo receber um acompanhamento educacional reabilitativo em sua própria residência. Contexto em que a escola especial também pode tornar-se parte no processo da educação inclusiva, preparando o aluno para o ensino regular, para a vida familiar e para a vida social.
Dois de abril é reconhecido pela ONU como o dia mundial da conscientização do autismo, sendo uma tendência à qual precisamos nos unir, pois quando um grupo é estigmatizado pela sociedade, a sua autodeclaração de identidade constitui um processo de resgate. A afirmação “sou deficiente” (surdo, cego, autista, dentre outras) constitui uma autocategorização, um processo de formação da identidade pessoal. Esta afirmação permite o deslocamento do discurso dominante da dependência e da anormalidade para a celebração da diferença e do orgulho de ter uma identidade. Trata-se tanto de um compromisso coletivo e político de protesto contra as barreiras sociais que colocam cidadãos em desvantagem, como de uma transformação da identidade pessoal vivenciada com orgulho pelos indivíduos com alguma diferença.
Geraldo Nogueira é presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/RJ.
Artigo publicado na edição de abril da revista Direcional Educador.
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