Jornal A Tarde
- Tatiana Mendonça
O que é novo para ele é estar cantando. Já ensaiou aqui e acolá numa
apresentação e outra, mas no DVD, o primeiro de sua carreira, assume-se de vez
no papel. “Antes, ficava mais por trás da cortina. Era aquele medo que não tinha
tamanho. Você ouve um Emílio Santiago, um Lazzo, um Roberto Ribeiro, um João
Nogueira…”. Foi pegando uma “coragenzinha” quando descobriu que a mão no ouvido
servia como retorno natural e, de tanto se namorar, gostou da voz que
tinha.
Já tem um fã ilustre, o cantor e compositor Martinho da Vila, que participou da gravação do DVD no Teatro Castro Alves, em agosto do ano passado, ao lado de artistas famosos, como Zeca Pagodinho, Ivete Sangalo, Jorge Aragão, Carlinhos Brown. “Gosto muito dele cantando e estou torcendo para o disco sair logo, para as pessoas poderem conhecer esse outro lado”.
De Montevidéu, no Uruguai, onde faria um show, Martinho contou que os dois
se conhecem há tantos anos que nem se lembra mais como o acaso os juntou. “Sei
que foi logo que comecei a ir para a Bahia. Ele fez parte das minhas primeiras
amizades, ao lado de Tião Motorista, Walmir Lima…”. Os encontros renderam
algumas parcerias. “Geralmente Rufino começa e eu termino. Ele tem uma
musicalidade própria, uma boa melodia, é inteligente nas letras. É um compositor
fino, rebuscado”.
Quando uma canção sua apareceu pela primeira vez na televisão para o Brasil
inteiro ver, não era seu nome que estava na tela. No Fantástico de 1976, Roberto
Ribeiro cantava Tempo Ê, que compôs em parceria com Zé Luiz do Império, mas
acabou creditada a Ederaldo Gentil. No dia seguinte, mais que envergonhado,
Ederaldo foi pedir desculpas ao amigo Nelson na fábrica em Pirajá, onde
trabalhava, mas ele respondeu então o que até hoje sustenta. “O anonimato nunca
me incomodou. O que importa é o que eu faço. Você tem que prestar satisfação a
si próprio”.
Rufino conheceu Roberto Ribeiro num encontro de sambistas no Rio de
Janeiro. Apaixonou-se por sua voz e saiu de lá pensando em fazer uma música para
ele. Seu parceiro entregou a canção para o diretor artístico da Odeon, que
avisou que o LP do cantor já estava pronto. “Mas se Rufino tem tanta fé assim na
música, diga para mandar”. No domingo, gravou a fita e, antes de seguir para a
fábrica na segunda-feira, enviou a K-7 como carta registrada. Ligou para o Rio
na terça para avisar que a canção estava viajando e do outro lado da linha ouviu
que ela já estava no disco. A dupla emplacaria outros hits: Todo Menino é Um
Rei, Vazio, Mel pra Minha Dor.
Em 1977, a Polygram convidou-o para ir viver no Rio, mas Rufino preferiu
não abandonar o emprego, onde trabalhava como metalúrgico desde os 22 anos.
“Filho não pede para nascer e eu já tinha três”.
Foi um adiamento, porque o hobby teve mesmo que virar meio de vida. Quando
completou 25 anos de serviço, Nelson sentiu que “não dava mais para bater
cartão”. “Foi um baque, uma metamorfose braba”. Mas a angústia não o acompanhou
por muito tempo. Em 1996, compôs a música que lhe daria paz: Verdade,
megassucesso na voz de Zeca Pagodinho. “Foi aí que eu fiz meu barraco”, conta,
rindo à larga.
Modo de dizer, vossas senhorias, que sua casa em Brotas é ampla, confortável e tem até o luxo da piscina com quiosque,
onde ele costuma compor no silêncio das madrugadas, duelando consigo. “Qual
é o meu grande adversário? Nelson Rufino, porque ainda não derrubei
Verdade”.
Zeca gravou outras músicas suas: O Dono da Dor, Pago pra Ver, Uma Prova de
Amor e a mais recente Hoje Sei que Te Amo. Foi outra parceria que terminou em
amizade. “Agora vou te dizer: não ligo para ele nem seis vezes ao ano. É
agoniado igual a mim, não tem saco de ficar no telefone”.
Mas, em certos casos, ele abre uma exceção. “Vamo falar de Rufino, é? Que
legal, meu amigo, meu irmão, que bom”, diz Zeca logo que atende a ligação da
Muito. Conta que, quando conheceu o compositor no Rio de Janeiro, prometeu fazer
uma peixada para ele. “Acabou que fiquei na noite com Arlindo (Cruz) e não
comprei o peixe, não fiz nada”. Foi-se o almoço, ficou a parceria. “Ele compõe
com o coração, tudo que Nelson faz é bom. Já me deu muitos sucessos, já trouxe
muita coisa boa para mim e para minha família. Às vezes, tô meio aporrinhado e
Nelson, com aquele jeito dele, vai me botando no lugar”.
O único problema é convencê-lo a mandar-lhe logo as músicas. “Tenho que
ficar atrás dele, procurando… Mas, quando ele manda, é tiro certo. Tem vezes que
o disco já está fechado, mas aí, quando escuto, digo: ih, vou ter que tirar
alguém. Geralmente, eu saio para dar lugar a Nelson”.
INSPIRAÇÃO
Muitas das canções de Nelson Rufino falam de amor, e ele se inspira até por
encomenda. Outro dia, a cantora Mariene de Castro já estava se despedindo da
visita quando o interpelou: “Ô, pai, você faz música para todo mundo e não vai
fazer para sua sobrinha?”. Nelson confessa que ficou com os olhos rasos d’água.
“Parei num bar em frente ao mar e na terceira cerveja já estava pedindo para o
parceiro gravar no celular: Quero te dar todo o amor da minha vida / Quero te
dar o meu mundo e muito mais… Aí vim para casa correr atrás do prejuízo”.
Amuleto da sorte acabou virando a música de trabalho do terceiro disco de
Mariene, Tabaroinha. “É o primeiro samba que gravo dele. Nelson fala de amor
lindamente e faz samba como os cariocas. Vejo esse perfil na melodia, no ritmo”,
conta ela. E quem há de negar que amor doído dá melhor samba? É só uma questão
de capitular. “Paixão é vômito. É o que vem para explodir. Você tem que fazer
versos para sangrar. Toda música minha tem que ter lá num canto uma coisa que
nego diga assim: filho da puta, me feriu… Quem quiser que aprenda a artimanha”,
ensina o mestre.
Desde menino, Nelson carrega uma melancolia, um calundu, como diziam as
vizinhas. Seus sambas estão mais próximos da tristeza de Batatinha do que da
alegria de Riachão, apesar de se dizer afilhado de ambos. Foi justamente com o
coração apertado que escreveu sua primeira música. Estava no Rio tentando a
sorte como jogador de futebol – “batia uma bolinha bonitinha” – quando recebeu
uma carta da irmã dizendo que voltasse, ou a mãe morreria de tédio. Nelson era o
caçula de 15 filhos. Escreveu Meu Primeiro Travesseiro para dona Chiquinha, mas
nunca chegou a gravá-la. Na carta-resposta, falava da música e, quando voltou a
Salvador, já estava espalhado que Curuba, seu apelido de infância, tinha virado
compositor.
Seu irmão prometeu que era ele quem faria o novo samba da escola do bairro,
a Filhos do Tororó, e a Nelson só coube honrar o compromisso. Era 1963. Dois
anos depois, escreveu seu primeiro samba-enredo, Postais da Bahia, que o sagrou
campeão do Carnaval. “Criei uma ala de pescadores e, quando ouvi aquele povo
todo cantando o samba na avenida, tive que enterrar o chapéu para poder
chorar…”.
O sucesso das escolas durou apenas uma década. Com o surgimento dos grandes
blocos de trio, foram minguando até desaparecer. Mas Rufino é mais de se adaptar
do que lamentar e, em 1995, criou o Alerta Geral, com a missão de fortalecer o
samba no Carnaval. “Depois a coisa ficou pequena, eram três caciques, e aí veio
o Amor e Paixão”. Um dos seus seis filhos, Fernando Rufino, 39, ajuda-o a
comandar o bloco, fundado há oito anos.
Convivendo com samba desde que se entende por gente, Fernando acabou
virando músico. Toca no Batifun, mas não compõe – ainda . “Quem sabe um dia vem
um vento…”. Vai ver a admiração que tem pelo pai anda intimidando sua veia
criativa. “Sou um fanzão. Rufino é um grande poeta, tem músicas muito ricas.
Esse momento de reconhecimento que ele está vivendo é fruto do trabalho, de uma
obra”.
BOEMIA
Em 12 de setembro, Nelson Rufino completa 70 anos. Farrista assumido, já
prepara um show no Parque da Cidade. “Boêmio serei sempre”. De uma mesa próxima
à piscina, Célia, com quem é casado há 41 anos, acompanha a entrevista. “Sou um
grande pai, me casei com uma mulher que é uma grande mãe. Ela suportou algumas
merdas minhas, mas o amor não tem jeito… Os devaneios e tramas da boemia… A
música é uma coisa muito sedutora…”, diz, com vãos pontuando as frases.
Célia balança a cabeça para confirmar as aprontações do marido, mas, rindo,
diz que já está conformada. “Ô, minha filha, depois de tanto janeiro, o que é
que se há de fazer?”. Juntos, vão aprendendo a ganhar “intimidade com a
longevidade”. “Os olhos não envelhecem, e, assim, o desejo permanece. É uma
questão de se educar, porque o corpo não acompanha mais o sonho”, filosofa
Rufino.
A forma como sua vida calhou de ser desenhada hoje o espanta. “Tem horas
que me pergunto: será que já andei essa estrada toda? Se o homem lá de cima me
der mais dez anos, vai ficar legal. O Brasil vai conhecer meu lado cancioneiro,
que está no baú. O baú é minha
aposentadoria”.
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