quinta-feira, 24 de maio de 2012

Gilberto Gil: “Sou um agenciador de ritmos”

Jornal A Tarde
Kátia Borges
 
Uma serenidade cativante pontua cada uma das frases ditas, ao telefone, por Gilberto Gil. Seja quando ele fala sobre o formato acústico do show Concerto de Cordas & Máquinas de Ritmo, que será apresentado em Salvador, nesta sexta e sábado, na Sala Principal do TCA, com participação da Osba. Seja quando relembra os três anos de exílio em Londres nos anos 1960 – de onde retornou há 40 anos – e para onde volta agora, mais uma vez, como uma das principais atrações do festival London 2012, que integra a programação cultural das Olimpíadas. Seja quando comenta suas descobertas ao chegar aos 70 anos, completados e comemorados em junho próximo, num balanço da vida e da carreira. Esse menino baiano, crescido no bairro do Tororó, que ouvia e gostava de música clássica e de toda variedade de canções populares, admite situar-se, muito confortavelmente, na história da MPB, como um agenciador de ritmos, sempre com um olho atento às coisas nativas e o outro ligado no mundo. Nesta entrevista, Gil fala também sobre o site www.jobim.org/gil/, que disponibiliza 30 mil documentos pessoais do seu acervo – desenhos, cadernos de anotações, fotos –, e sobre a vontade que sente de voltar a morar em Salvador.
NOVO SHOW
Na verdade, esse formato é resultado de experiências que já vêm sendo feitas desde Banda Dois, que eu fazia com Bem, meu filho, só eu e ele. Depois, numa segunda temporada, incorporamos o Jaquinho (Jaques) Morelenbaum com o violoncelo e algumas alterações, acréscimos, no repertório. E agora estamos fazendo esse Concerto de Cordas e Máquinas de Ritmo, que incorpora mais o violino de Nicolas Krassik e a percussão do Gustavo de Dalva. O termo “máquina de ritmos”, que se acrescenta ao título, é exatamente por conta desta inserção das máquinas de ritmo, os instrumentos acústicos, os tambores, o berimbau, enfim. E as máquinas eletrônicas, que também aparecem aqui e ali, em alguns momentos do repertório.
MEMÓRIA
Depois de tantos anos de trabalho, há uma decantação natural de memória. Essa memória, acumulada em vários tipos de suporte na fase analógica, vai agora para a digitalização. Na medida em que as tecnologias foram se ampliando, tornando-se audiovisuais e táteis, foi ficando meio inevitável fugir. Você tem que utilizar, inclusive para propiciar um acesso mais abrangente, mais universal. Os acervos digitais, você pode tê-los nos computadores, em casa, nos telefones, televisores, iPads, em todos esses aparelhos que formam essa grande janela audiovisual. A ideia nasceu disso, meio obrigatória, meio imposta.
UNIVERSO DIGITAL
Tudo isso é muito novo, há aspectos que ainda são muito experimentais, incipientes, as coisas estão ganhando conformação agora. Na verdade, a gente não pode falar de um universo digital já consolidado, já implantado com todos os seus corpus, todos os seus astros, todas as suas dimensões. Há muita variação, muitas possibilidades. Uma coisa que você tocou, por exemplo, no fato dos álbuns, do formato álbum, da necessidade que as pessoas ainda têm de ter capas, encarte, informações ligadas a textos, fotografias, ao making of dos projetos. Tudo isso recupera também, digamos assim, garante trabalho, ocupação e importância a programadores visuais, designers, fotógrafos, artistas plásticos, enfim. Então, ao mesmo tempo que essas tecnologias aposentam muita coisa, elas reintroduzem, reciclam várias possibilidades novas. Não é uma coisa assim que vá acabar com tudo que acontecia antes, que vá abolir completamente as formas de registro anteriores para inaugurar uma coisa completamente nova. Não, é como o próprio cinema, como a própria televisão. A televisão recuperou muita coisa do rádio, incorporou muita coisa do cinema. Da mesma maneira, a internet e todas estas mídias novas estão incorporando coisas das mídias anteriores. O futuro, de certa forma, vai se formando com camadas de presente e de passado.
MÚSICA E CLASSE C
É uma mixagem dos velhos Brasis. O baião é um dos gêneros matrizes da coisa brasileira, como é o samba. Samba e baião são, talvez, os dois grandes gêneros matriciais. Ao mesmo tempo, ao longo da história, eles foram produzindo filhotes, descendentes, derivados. Então, você tem o samba, cuja fotografia principal, digamos assim, era o Rio de Janeiro, urbano, cosmopolita. Com os novos meios de comunicação, as novas técnicas de reprodução, outras formas de samba, regionais, rurais, foram sendo incorporadas. A mesma coisa aconteceu com o baião, representado magistralmente por Luiz Gonzaga. Hoje, você tem os baiões das regiões todas do Brasil. Os baiões amazônicos, os baiões nordestinos, os baiões mineiros, que vão ganhando novos títulos, tornando-se subgêneros, numa divisão enorme de categorias e subcategorias. E é isso, essa é a realidade da música brasileira hoje. Você vai ampliando essas grandes matrizes de gêneros e elas vão se tornando armazéns enormes onde você tem subprodutos e subprodutos e subprodutos. Há muita coisa nova no Nordeste, no Sul, no Centro-Oeste, em vários lugares. Isso tem a ver com essa questão de que o interior vai se tornando capital e a capital vai se tornando interior, o mar vai virando sertão e o sertão vai virando mar.
70 ANOS DE VIDA E DE MÚSICA
Foi do meu destino ser esse elemento propiciatório de processos pluralizantes, de processos miscigenantes. Eu fui assim desde menino, ouvia muito, ouvia tudo, ouvia desde música clássica a toda variedade de música popular a que era possível ter acesso naqueles primeiros tempos, entre os anos 1940 e 1960. Depois, veio toda essa onda, com a possibilidade de acesso aos modelos internacionais, aos gêneros universais, que foram se misturando com a música brasileira. E eu sempre agenciando, sempre me colocando à disposição desse agenciamento, uma coisa que uma vez um antropólogo chamou de mercadores de ritmos, que saíram pelo mundo, na segunda metade do século 20, com o advento das tecnologias novas de comunicação, mercando ritmos e intercambiando gêneros musicais entre as Américas e a África, a Ásia e a Europa e assim por diante. Então eu me tornei um artista que processa isso o tempo todo, as coisas nativas, brasileiras. Eu sou muito baiano, tenho muito apreço pela dimensão local, pelas coisas regionais. Mas, ao mesmo tempo, fui sempre muito atento às coisas do mundo, ao movimento musical que veio com o cinema americano, depois da Segunda Guerra, a força do cinema americano, trazendo hábitos novos daquela juventude, que foram, por sua vez, reprocessados com elementos locais, criando novas brasilidades, novas formas de música brasileira, de cinema brasileiro, de televisão brasileira. E eu estive sempre no meio de tudo isso confortavelmente me colocando como agenciador desses processos. Foi assim, foi meu destino. A vida me levou a isso, e agora, aos 70 anos, só tenho que fazer as contas (risos).
A NOVA MÚSICA DA BAHIA
Não tenho tempo físico disponível para ouvir todos os discos. Mas a gente, no percurso natural que vai fazendo pela rua do mundo, vai passando, e cada janela tem uma coisa, cada porta tem uma coisa, cada lugar tem uma coisa. Você vai vendo tudo e, no final da rua, acaba tendo um panorama geral atualizado, ainda que parcialmente, daquilo que vai ser a edição de amanhã, que vai ser a rua amanhã. Você citou Márcia Castro e eu sei quem é ela, cantei com ela no Expresso 2222. Sei do sentido eclético que ela procura dar ao que faz. Márcia é interessada em tudo que já foi acumulado, muita coisa do passado, das heranças, mas já projetando uma nova fase criativa, um novo momento. Ela representa muito bem essas novidades.
A BAIANIDADE ACABOU
Tenho a impressão de que quando Milton Moura fala isso (na Muito, edição 202), que a baianidade acabou, o que ele quer dizer é que os modos consolidados que representavam essa baianidade foram sendo diluídos nessas novas garapas, nesses novos refrescos, nesses novos refrigerantes que vão surgindo com a pós-modernidade. Uma das características da pós-modernidade é a fragmentação, nada tem mais um corpo sólido, bem delineado, tudo é uma soma meio caótica de elementos variados. É essa fragmentação que invade a baianidade, e quaisquer outras identidades. Mas, ao mesmo tempo, uma espécie de espírito geral do que marcou aquelas identidades vai permanecendo, vai se transferindo para esses corpos fragmentários. Eu não ousaria dizer que a baianidade acabou, porque, quando você chega a Salvador, ou aos interiores da Bahia, que formaram a baianidade, você ainda encontra muito disso, as falas, os modos afetivos. Apesar da transformação imposta pela televisão, ainda existem formas gregárias, as festas, pilares do imaginário popular, que se mantém no modo de se vestir, no modo de andar. Se você chega a Salvador e vê os rapazes e as moças – ou mesmo pessoas mais velhas – andando, na praia ou em qualquer lugar, e você compara com cariocas, paulistas, pernambucanos, você vê ali um traço claro de baianidade, é só prestar atenção. Está no inconsciente. Essa baianidade consciente, produtora de um discurso identitário, de uma narrativa de modos de constituição, isso pode estar se perdendo, mas a alma, uma coisa que não se vê (risos), isso, se você prestar atenção, está lá. O problema é que a gente não tem mais tempo de ver as diferenças, fica querendo que tudo se reduza a uma homogeneidade global. Nesse sentido, sim, a baianidade acabou. Mas não só a baianidade, a americanidade, o modo inglês, o modo francês, a China então nem se fala (risos). Tudo está virando outra coisa. Mas, ao mesmo tempo, essas particularidades que pertencem ao espírito, que não são da dimensão do palpável, que pertencem ao intangível. Patrimônio intangível (risos). A baianidade é isso! Nesse campo, quem pode, com certos tentáculos da alma, atingir esses corpos sutis da intangibilidade, vai encontrar a baianidade lá. Basta passar pelo Porto da Barra, Rua Chile, entrar no Mercado Modelo, você vai encontrar – num grito, num dizer, numa nova gíria –, você vai reencontrar Cuíca de Santo Amaro.
A CIDADE
Tenho pensado em voltar a morar em Salvador. Vou voltar, sim. E venho acompanhando as inquietações, as insatisfações, cíclicas, em relação aos governantes, em relação ao modo de inserção do Estado na vida da cidade, a questão do diálogo entre cidadania e governo, governança e cidadania, como é que as pessoas querem ser governadas e como elas querem participar, opinar sobre o design físico e o design espiritual que a cidade dever ter, precisa ter. Venho acompanhando tudo isso, e foi sempre assim. Mas hoje isso é intensificado pela agilidade dos meios, das redes sociais e das formas contemporâneas de protesto.
A POLÍTICA
Não penso em voltar a ser parte do estamento político tradicional. Mas, como cidadão, estou sempre prestando atenção a tudo e contribuindo com fragmentos de participação. Não quero ser político e, na verdade, nunca fui, salvo em pequenos períodos, em que a interface política era obrigatória, em que eu tinha que ter uma relação natural, exigida, com o mundo político. Mas não quero reeditar isso na minha vida de jeito nenhum. Só se acontecer por ingerência do destino (risos).
O EXÍLIO
Nos três anos em que vivi em Londres, aprendi a gostar mais amplamente da música pop, a conviver com a variedade do rock, com os novos hábitos da juventude, essas coisas que hoje estão amplamente disseminadas, as formas novas de indumentária, de ornamentação, de moda, do trato do corpo. Quando fui para lá, essa pós-modernização estava apenas começando. Eu me beneficiei, tanto no sentido positivo quanto no sentido negativo, essas coisas entraram na minha vida, para o bem e para o mal. Foi um período de crescimento, de enriquecimento, de continuidade da caminhada. Não tenho um sentimento de extirpar da minha história o exílio. Aprendi ali muita coisa que passei a usar na minha vida. Foi no exílio que aprendi a ser band leader (risos), a ficar à frente de uma banda e a levantar a galera. Não que aquela escola tenha sido a única, mas passar por ela foi fundamental.
DE VOLTA A LONDRES
Na verdade, ao longo dos últimos 40 anos, eu tenho voltado a Londres muitas vezes e em circunstâncias variadas, especialmente como artista. E tenho acompanhado as transformações da cidade. Londres mudou muito, perdeu aquela marca muito inglesa, com elementos da migração asiática, da Índia, e da migração da América Central, da Jamaica, ficou mais cosmopolita, cheia de gente do mundo inteiro. A Inglaterra se abriu para a Europa, porque ela tinha uma pendenga histórica com a Espanha, com a França e com a Alemanha. Hoje, já não é mais aquela ilha isolada. Você sente em Londres hoje um cosmopolitismo mais internacionalista, semelhante ao que você encontra em Tóquio, em Tel Aviv ou no Rio. Eu desenvolvi uma afetividade especial pela Inglaterra por conta de ter vivido lá, de ter tido um filho que nasceu lá, e considero esse retorno como mais um estágio da relação especial que a história da minha vida exigiu que eu tivesse com aquele lugar.

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