quinta-feira, 24 de maio de 2012

O ritmo do tempo

Jornal A Tarde - Tatiana Mendonça



Prestes a completar 70 anos e com uma trajetória vitoriosa como compositor, o sambista baiano Nelson Rufino aposta agora todas as fichas em uma carreira como cantor Está claro como um dia claro que seu tempo chegou. Sem alarde, sem barulho, só uma certeza calma que o transforma em rei. Melhor dizendo, que o revive rei, porque já teve coroa quando menino. Nelson Rufino, 69, anda se sentindo assim. Porque o povo agora o para na rua para tirar foto enquanto ele está lá tomando sua cervejinha, porque agora sabem que aquela música famosa que toca no rádio foi ele quem fez, e até o seu DVD, pensado como oportunidade de saudar a vida com uma reunião de amigos, vai ser lançado por uma grande gravadora, a Universal. O que falta é uma data, mas Rufino aprendeu a não ter pressa. “É impressionante a força que as coisas trazem quando têm que acontecer. Então, obrigado, Senhor, valeu a pena ter tido paciência. E agradeço ainda mais pela longevidade que ele está me dando. Para ter paciência, é preciso ter sorte com a longevidade”.

Com os cabelos já brancos provando a graça alcançada, ele fala de forma pausada e ordenada, como se cada resposta fosse feita de ter pensado muito nelas antes. Os agradecimentos a Deus, de tão frequentes, servem de vírgulas. “Se não quiser chamar assim, chame de o criador do universo. O homem não fez o céu, o mar, as estrelas, minha lua cheia. Foi um ser supremo por quem tenho um respeito muito especial”.

O que é novo para ele é estar cantando. Já ensaiou aqui e acolá numa apresentação e outra, mas no DVD, o primeiro de sua carreira, assume-se de vez no papel. “Antes, ficava mais por trás da cortina. Era aquele medo que não tinha tamanho. Você ouve um Emílio Santiago, um Lazzo, um Roberto Ribeiro, um João Nogueira…”. Foi pegando uma “coragenzinha” quando descobriu que a mão no ouvido servia como retorno natural e, de tanto se namorar, gostou da voz que tinha.

Já tem um fã ilustre, o cantor e compositor Martinho da Vila, que participou da gravação do DVD no Teatro Castro Alves, em agosto do ano passado, ao lado de artistas famosos, como Zeca Pagodinho, Ivete Sangalo, Jorge Aragão, Carlinhos Brown. “Gosto muito dele cantando e estou torcendo para o disco sair logo, para as pessoas poderem conhecer esse outro lado”.

De Montevidéu, no Uruguai, onde faria um show, Martinho contou que os dois se conhecem há tantos anos que nem se lembra mais como o acaso os juntou. “Sei que foi logo que comecei a ir para a Bahia. Ele fez parte das minhas primeiras amizades, ao lado de Tião Motorista, Walmir Lima…”. Os encontros renderam algumas parcerias. “Geralmente Rufino começa e eu termino. Ele tem uma musicalidade própria, uma boa melodia, é inteligente nas letras. É um compositor fino, rebuscado”.


Por causa desse refinamento, muita gente já fez sucesso por meio das músicas de Nelson Rufino, que no ano que vem completa cinco décadas de samba. A lista começa em Eliana Pittman, que em 1970 gravou Alerta Mocidade, e segue estrelada com Alcione, Roberto Ribeiro, Jorge Aragão, João Nogueira, Nara Leão, Elza Soares, Emílio Santiago, Zeca Pagodinho… O sambista baiano, criado na Curva Grande do Garcia, jura que não ligava de ficar só no bastidor. “Talvez essa tenha sido minha grande arma. Ter estado um pouco escondido me manteve virgem, e isso é bom”.

Quando uma canção sua apareceu pela primeira vez na televisão para o Brasil inteiro ver, não era seu nome que estava na tela. No Fantástico de 1976, Roberto Ribeiro cantava Tempo Ê, que compôs em parceria com Zé Luiz do Império, mas acabou creditada a Ederaldo Gentil. No dia seguinte, mais que envergonhado, Ederaldo foi pedir desculpas ao amigo Nelson na fábrica em Pirajá, onde trabalhava, mas ele respondeu então o que até hoje sustenta. “O anonimato nunca me incomodou. O que importa é o que eu faço. Você tem que prestar satisfação a si próprio”.

Rufino conheceu Roberto Ribeiro num encontro de sambistas no Rio de Janeiro. Apaixonou-se por sua voz e saiu de lá pensando em fazer uma música para ele. Seu parceiro entregou a canção para o diretor artístico da Odeon, que avisou que o LP do cantor já estava pronto. “Mas se Rufino tem tanta fé assim na música, diga para mandar”. No domingo, gravou a fita e, antes de seguir para a fábrica na segunda-feira, enviou a K-7 como carta registrada. Ligou para o Rio na terça para avisar que a canção estava viajando e do outro lado da linha ouviu que ela já estava no disco. A dupla emplacaria outros hits: Todo Menino é Um Rei, Vazio, Mel pra Minha Dor.

Em 1977, a Polygram convidou-o para ir viver no Rio, mas Rufino preferiu não abandonar o emprego, onde trabalhava como metalúrgico desde os 22 anos. “Filho não pede para nascer e eu já tinha três”.

Foi um adiamento, porque o hobby teve mesmo que virar meio de vida. Quando completou 25 anos de serviço, Nelson sentiu que “não dava mais para bater cartão”. “Foi um baque, uma metamorfose braba”. Mas a angústia não o acompanhou por muito tempo. Em 1996, compôs a música que lhe daria paz: Verdade, megassucesso na voz de Zeca Pagodinho. “Foi aí que eu fiz meu barraco”, conta, rindo à larga.


Modo de dizer, vossas senhorias, que sua casa em Brotas é ampla, confortável e tem até o luxo da piscina com quiosque,

onde ele costuma compor no silêncio das madrugadas, duelando consigo. “Qual é o meu grande adversário? Nelson Rufino, porque ainda não derrubei Verdade”.

Zeca gravou outras músicas suas: O Dono da Dor, Pago pra Ver, Uma Prova de Amor e a mais recente Hoje Sei que Te Amo. Foi outra parceria que terminou em amizade. “Agora vou te dizer: não ligo para ele nem seis vezes ao ano. É agoniado igual a mim, não tem saco de ficar no telefone”.

Mas, em certos casos, ele abre uma exceção. “Vamo falar de Rufino, é? Que legal, meu amigo, meu irmão, que bom”, diz Zeca logo que atende a ligação da Muito. Conta que, quando conheceu o compositor no Rio de Janeiro, prometeu fazer uma peixada para ele. “Acabou que fiquei na noite com Arlindo (Cruz) e não comprei o peixe, não fiz nada”. Foi-se o almoço, ficou a parceria. “Ele compõe com o coração, tudo que Nelson faz é bom. Já me deu muitos sucessos, já trouxe muita coisa boa para mim e para minha família. Às vezes, tô meio aporrinhado e Nelson, com aquele jeito dele, vai me botando no lugar”.

O único problema é convencê-lo a mandar-lhe logo as músicas. “Tenho que ficar atrás dele, procurando… Mas, quando ele manda, é tiro certo. Tem vezes que o disco já está fechado, mas aí, quando escuto, digo: ih, vou ter que tirar alguém. Geralmente, eu saio para dar lugar a Nelson”.

INSPIRAÇÃO

Muitas das canções de Nelson Rufino falam de amor, e ele se inspira até por encomenda. Outro dia, a cantora Mariene de Castro já estava se despedindo da visita quando o interpelou: “Ô, pai, você faz música para todo mundo e não vai fazer para sua sobrinha?”. Nelson confessa que ficou com os olhos rasos d’água. “Parei num bar em frente ao mar e na terceira cerveja já estava pedindo para o parceiro gravar no celular: Quero te dar todo o amor da minha vida / Quero te dar o meu mundo e muito mais… Aí vim para casa correr atrás do prejuízo”.

Amuleto da sorte acabou virando a música de trabalho do terceiro disco de Mariene, Tabaroinha. “É o primeiro samba que gravo dele. Nelson fala de amor lindamente e faz samba como os cariocas. Vejo esse perfil na melodia, no ritmo”, conta ela. E quem há de negar que amor doído dá melhor samba? É só uma questão de capitular. “Paixão é vômito. É o que vem para explodir. Você tem que fazer versos para sangrar. Toda música minha tem que ter lá num canto uma coisa que nego diga assim: filho da puta, me feriu… Quem quiser que aprenda a artimanha”, ensina o mestre.

Desde menino, Nelson carrega uma melancolia, um calundu, como diziam as vizinhas. Seus sambas estão mais próximos da tristeza de Batatinha do que da alegria de Riachão, apesar de se dizer afilhado de ambos. Foi justamente com o coração apertado que escreveu sua primeira música. Estava no Rio tentando a sorte como jogador de futebol – “batia uma bolinha bonitinha” – quando recebeu uma carta da irmã dizendo que voltasse, ou a mãe morreria de tédio. Nelson era o caçula de 15 filhos. Escreveu Meu Primeiro Travesseiro para dona Chiquinha, mas nunca chegou a gravá-la. Na carta-resposta, falava da música e, quando voltou a Salvador, já estava espalhado que Curuba, seu apelido de infância, tinha virado compositor.

Seu irmão prometeu que era ele quem faria o novo samba da escola do bairro, a Filhos do Tororó, e a Nelson só coube honrar o compromisso. Era 1963. Dois anos depois, escreveu seu primeiro samba-enredo, Postais da Bahia, que o sagrou campeão do Carnaval. “Criei uma ala de pescadores e, quando ouvi aquele povo todo cantando o samba na avenida, tive que enterrar o chapéu para poder chorar…”.

O sucesso das escolas durou apenas uma década. Com o surgimento dos grandes blocos de trio, foram minguando até desaparecer. Mas Rufino é mais de se adaptar do que lamentar e, em 1995, criou o Alerta Geral, com a missão de fortalecer o samba no Carnaval. “Depois a coisa ficou pequena, eram três caciques, e aí veio o Amor e Paixão”. Um dos seus seis filhos, Fernando Rufino, 39, ajuda-o a comandar o bloco, fundado há oito anos.

Convivendo com samba desde que se entende por gente, Fernando acabou virando músico. Toca no Batifun, mas não compõe – ainda . “Quem sabe um dia vem um vento…”. Vai ver a admiração que tem pelo pai anda intimidando sua veia criativa. “Sou um fanzão. Rufino é um grande poeta, tem músicas muito ricas. Esse momento de reconhecimento que ele está vivendo é fruto do trabalho, de uma obra”.

BOEMIA

Em 12 de setembro, Nelson Rufino completa 70 anos. Farrista assumido, já prepara um show no Parque da Cidade. “Boêmio serei sempre”. De uma mesa próxima à piscina, Célia, com quem é casado há 41 anos, acompanha a entrevista. “Sou um grande pai, me casei com uma mulher que é uma grande mãe. Ela suportou algumas merdas minhas, mas o amor não tem jeito… Os devaneios e tramas da boemia… A música é uma coisa muito sedutora…”, diz, com vãos pontuando as frases.

Célia balança a cabeça para confirmar as aprontações do marido, mas, rindo, diz que já está conformada. “Ô, minha filha, depois de tanto janeiro, o que é que se há de fazer?”. Juntos, vão aprendendo a ganhar “intimidade com a longevidade”. “Os olhos não envelhecem, e, assim, o desejo permanece. É uma questão de se educar, porque o corpo não acompanha mais o sonho”, filosofa Rufino.

A forma como sua vida calhou de ser desenhada hoje o espanta. “Tem horas que me pergunto: será que já andei essa estrada toda? Se o homem lá de cima me der mais dez anos, vai ficar legal. O Brasil vai conhecer meu lado cancioneiro, que está no baú. O baú é minha aposentadoria”.

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